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A ESTRANHA MORTE DO VELHO JARDELINO*

Foto do escritor: Pedro StiehlPedro Stiehl


Não mais que assim, do nada, um homem termina. Acaba. Morre. Era só um homem, um homem comum, o velho Jardelino. O que mais lhe restaria senão debandar da existência da forma serena como parece a todos ao redor do esquife? A um homem quase nada resta se os anos lhe tomam as pequenas coisas que ama, que por amar profundamente não eram pequenas coisas, mas este julgamento morre junto. Não é menos verdade dizer que o velho Jardelino permitiu, sem luta, que levassem algumas de suas preciosidades. Ajudou que levassem. Por desleixo, por desassossego, por vingança, que fosse! Ajudou! E por deixar, as perdeu. Não eram mais suas. Se é que algum dia foram. Leona recebia a todos com uma dor resignada. “Morreu dormindo. A melhor das mortes que Deus pode conceder”. No velório, nem todos que chegam, passam da porta para rezar sobre o cadáver. Sempre há os que só observam de longe. Sempre há.


É possível que se quisesse uma viúva mais desesperada. Mais lacrimosa. Mas os anos, os desgastes, as circunstâncias do dia-a-dia podem muito bem extrair sentimentos ou adicionar forças donde se pensou não mais existirem um ou outro. E, é claro, doutor Antero tinha palavras de conforto. Médico da família há muito, já alertara sobre a possibilidade do velho Jardelino não vingar o ano em curso. Mesmo anos em curso anteriores. Leona cochichou ao ouvido do doutor: “Que bom que vieste. Ele estava bebendo tanto, tanto. Tudo que passei nessa vida. Tu sabes. Tudo que perdi por ficar ao seu lado.” Doutor Antero e seu abraço fraterno. Doutor Antero.


Mas não Doroti. Doroti foi copiosa em lágrimas. Farta em desespero. Trinta anos de casa a tornaram dela. E de todos ali. Não eram ainda quatro horas da manhã quando Leona bateu à sua porta. Se a urgência a tirou da cama com eloquência, a cena a calou. Mas, recuperada do susto, Doroti foi frenética, eficiente e fiel. Primeiro baldes de água para sumir com o vômito de um homem desesperado. Um vômito que desenhou pela casa a caminhada de uma inominável agonia; agonia de alguém sequer pode gritar por ajuda. De qualquer forma, se tivesse gritado quem o ouviria? Por detrás das portas havia olhos, mas nenhum ouvido. Sempre há os que só observam. Sempre há.


Quando chegou, Doroti encontrou um mundo novo; o mundo de um homem contorcido e sujo de sucos gástricos e dejetos intestinais. Mas em uma hora, ou pouco mais, limpou-o, trocou suas roupas fétidas e o colocou sentado no sofá, como de resto fizera inúmeras vezes, quando ele caía bêbado na sala, ou na cozinha. Sempre o fizera enquanto estava vivo. Agora que estava morto, Doroti fez o obséquio de repetir esta sua rotina. Deus sabe que o velho Jardelino já estava morto bem antes de morrer. Desde a morte de Isabel, a primogênita. Na época, Leona e doutor Antero deram-lhe a grave notícia. Doutor Antero o abraçou e consolou suas lágrimas de velho bêbado que perdia a filha. E agora assinara seu atestado de óbito: morte súbita. Causa: alcoolismo. Doutor Antero.

Isabela, filha querida. O velho Jardelino lhe dizia ao ouvido: não case com este traste. Ele não presta! Ela casou. Ele viu a filha infeliz. Depois abandonar o casamento. Depois ir embora de tudo e todos. E enfim, morrer de uma maneira tão estúpida e tão distante que quase não o deixaram chorar por ela. Ele só podia observar, velho que era, Isabela sumir de si mesma, depois sumir dele, até lhe restar somente na memória, de onde a observava, pois é natural haver o que só se pode se olhar de longe. Sempre há.


Quando Doroti foi para casa, pelas vinte horas, o velho Jardelino bebia no sofá da sala. Como todos os dias e todas as noites de tantos anos. Leona, bem vestida e perfumada, disse: vou sair, mas não demoro. Que ele podia ficar um pouco sozinho. “Tranque bem a porta!”, recomendou a ela. Para ele, boas palavras. Volto logo, meu amor. Fique com Deus. Com seus olhos miúdos ele a observava. Olhos que, de tão miúdos, de certo não diziam nada. Mas talvez Doroti, e só ela, os ouvisse. Talvez só ela soubesse o que eles viam. Sempre há quem vê o que não está visível. Não! Não os olhos miúdos do velho Jardelino. Talvez outros. Porque sempre há.


O dia ainda não havia nascido quando Doroti perguntou pelo copo. Copo? Sim, o copo em que ele estava bebendo. Ah, sim, quebrou, pus fora. A última vassoura, Doroti esperou para passar quando levaram o corpo. Debaixo do sofá rolou um copo. Ou o que restava de um copo. Pôs a mão no peito e deixou escapar pelos lábios o ar de um pequeno susto. Doroti pegou o caco com cuidado e observou-o bem de perto. Sempre há os que observam. Sempre.


Colocou-o dentro de um plástico e o fechou nele, hermeticamente. Levou-o consigo e o guardou pelo resto da vida. Doroti era daquelas que guardam as coisas para que alguém um dia ache. Essas pessoas sempre há.


* Conto inédito.

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