No ano de 2009, foram publicadas várias crônicas na Revista Diversa, aqui de Montenegro. Uma delas, "Clarice, Clarice" publico aqui na íntegra. As demais, em imagens.
Na ordem cronológica: A arte de ser homem (jan/2009); Uma fábula moderna (fev/2009); O clone (abril/2009); O clone II (maio/2009); Zeitgeist, a teoria da conspiração (junho/2009); Mini contos (julho/2009); Dignidade é cair atirando (agosto/2009); Poesia e memória (set/2009); Um livro bom ao extremo (out/2009); Clarice, Clarice (dez/2009); 2009, um ano bem literário (jan/2010).
Aqui a crônica, "CLARICE, CLARICE"

Há quem diga, é não é de se duvidar, que a grande pergunta da Literatura está na Bíblia, na boca de Pilatos quando, ao inquirir Cristo (João, 18, 38) questiona: o que é a verdade? Claro, para quem não considera a Bíblia um livro santo, mas somente uma grande obra literária. “O que é a verdade?” é mesmo uma grande pergunta, das melhores. Mas não seria uma heresia encontrar outra numa obra mais humilde, sem a grandeza filosófica e religiosa de uma Bíblia, e que fosse uma pergunta tão ou mais profunda quanto a de Pilatos. E que não fosse uma pergunta direcionada ao filho de Deus, mas a nós todos, filhos de sei lá quem.
Digamos esta: “O que vem depois de se ser feliz?” Pegou? Vou repetir: “Depois que se é feliz, o que acontece?”. Clarice Lispector em seu primeiro livro: Perto do coração selvagem.
Reler clássicos é sempre uma aventura. Principalmente quando se tem quase uma vida de intervalo entre uma leitura e outra. Ler Clarice Lispector com cinqüenta anos, depois de extensa caminhada é muito diferente de lê-la com dezessete, vinte anos quando se é, salvo exceções, a um leitor insipiente. Da mesma maneira que se é um homem insipiente nesta idade, com tudo mal domado nas mãos. Mas Clarice estava longe de ser insipiente com 19 anos quando escreveu Perto do coração selvagem. Publicou-o com 23. Não, a jovem Clarice não era nada insipiente na tenra juventude. Impressiona muito ter-se o que dizer nesta idade.
E já que estamos na linha bíblica: há quem queira encontrar Deus. Outros a vida eterna, o elixir da felicidade. Eu, por mim, estou sempre procurando alguém. Pessoas. De qualquer época (somos todos contemporâneos da sensibilidade, graças à Literatura). Procurando... reencontrei Clarice. Imagine quem nunca a encontrou!? Quanto prazer à espera; quanta beleza aguarda os que não descobriram Clarice. Como são felizes os que ainda tanto tem a encontrar, felizes potencialmente, quero dizer! Não sabem o que estão prestes a desvendar. Mas se ganham um aviso, como esta crônica o faz, por exemplo, dá para imaginar: as delícias, as feições ávidas, como quem antevê o gozo, como quem se excita na arte da expectativa, da promessa. Ainda mais com mulher. Mulher é tudo de bom!, é minha frase definitiva. Em Literatura, então, nem se fala!
Não se pense, contudo, que seja fácil nos envolvermos com Clarice. Com seu jorro mental; seus fluxos de consciência domados, lúcidos, e lúdicos, abismos em queda livre nos quais nos remete; com suas imagens brilhantes, seus jogos de palavras: “tinha medo de não estar presente em todos os seus pensamentos”; suas metáforas desconcertantes: “... o mar rolava escuro, nervoso, as ondas mordiam-se na praia.”; sua prosa poética quando diz: “... O frio corre com seus pezinhos gelados por suas costas, mas ela não quer brincar...” . E suas definições: principalmente suas definições. “E foi tão corpo que foi puro espírito”.
Literatura é ação. Em Clarice Lispector este fundamento está bem realizado. Mas não é só ação física. É muito ação mental. O intelecto, as ideias em conflito com o mundo. As ideias sobre as coisas, que justamente faz com que tenhamos conflitos. Seus personagens pensam. E como pensam! Clarice não é fácil!
Perto do coração selvagem é a história de Joana e sua sinceridade. A história das dificuldades de se ser sincero e verdadeiro a qualquer custo. Inclua-se aí a vontade se ser má, a vontade de não reprimir desejos, a vontade de ser plena. Impossível? Claro. Por isso diz lá pelas tantas: “... compreende a vida porque não é suficientemente inteligente para não compreendê-la”. Sentiu o tapa? Eu também! Clarice e Joana, Joana e Clarice (serão a mesma pessoa?) estão aí para nos mostrar que o caminho das pedras... é só o caminho das pedras. Nada mais. Qualquer pessoa inteligente sabe que a vida é incompreensível. Joana é mais inteligente que os personagens masculinos. Parece precursora de uma condição feminina que ainda estava para nascer. Os homens são menores. Velhos e decadentes como seu professor, incapazes da sinceridade e da fidelidade como o marido.
Perto do coração selvagem é um enorme monolito da condição feminina (e humana, por conseguinte) questionada e enfrentada. E a grandeza do seu discernimento sobre esta condição espelha-se numa passagem sobre a maternidade, um conceito profundo sobre a complexidade deste tema que assusta pela precocidade: “... E quando me filho me toca não me rouba o pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seis frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada.” Esta frase final então é que resume toda a condição psicológica da maternidade. Nenhuma mãe é enganada por um filho por ele ter arrancado toda a energia possível dela e depois sair assoviando para viver sua própria vida. As coisas simplesmente são assim e é preciso despojar-se de si para seguir as forças da natureza sem sofrer muito. E Clarice só tinha dezenove anos quando escreveu este pedação. Precisou vir uma russa emigrada para desencadear na Literatura Brasileira o estopim da profunda literatura intimista, do texto confessional, da discussão do papel do indivíduo no mundo. Houve quem a comparasse com Kafka. Briga feia. Meu voto é dela.
Agora é retomar seus romances posteriores como A hora da estrela, Água viva e a A paixão segundo G. H. e seus contos como os de Laços de Família e A via crucis do corpo. Não é uma promessa. É um pedido da alma à minha força de vontade (mas não há garantias de que minha vontade possa satisfazer-me a alma!). Respeito quem assuma a postura, ou a promessa religiosa, de reler outros: Borges, Cortázar, Saramago, Dostoievski e sua frase maravilhosa: A beleza salvará o mundo! Respeito! Admiro pessoas que tomam para si estas tarefas árduas de encontrar o mundo, de percebê-lo e de buscarem, através da Literatura, ferramentas para enfrentá-lo! Eu, por mim, estou na fase clariceana. Meu espírito pede desde os farelos que caíram de seu prato até seu último ponto final. É um taco digno de confiar, o taco de Clarice. É preciso bebê-la intensamente até que ela desapareça dentro de mim, faça parte da minha estrutura biológica, como ela já fazia com seus leitores muito antes de eu nascer. É seu veneno em nosso favor. Por isso retomo aqui o final impulsivo de Perto do coração selvagem: “... um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, (...) que tudo o que eu for será sempre onde haja um mulher com o meu princípio, (...) eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não levemente sentidas (...) não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! (...) de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”
Joana/Clarice: Nietzsche em estado puro, abrasivo, destilando vida! E se um personagem de literatura quer viver, é o autor que quer viver. Viver muito. Assim como nós, leitores que os buscamos e sôfregos com sua vontade de viver sequer imaginamos o que há depois da felicidade, do que acontece depois que se é feliz!"
Na imagem, a mão talentosa de Érico Santos retrata Clarice.











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