Queria ter feito um diário. Desde menino. Mas não tive paciência nem disciplina. Tivesse tido saberia o que fiz, o que pensava, o que fizeram comigo aos 13, aos 19, aos 24 anos. Não seriam somente fragmentos de uma memória falível. Eu saberia! E saber, vocês sabem, é tudo!
Se soubesse que escreveria, que faria da minha vida literatura, então seria pão quente numa manhã com fome. Mas não tive a necessária paciência, a disciplina. Fui um menino desinstruído do futuro. Se eu tivesse apalpado o amanhã, como um cego busca pelo tato, nossa!... O presente seria outro!
Hoje, o que vivi é uma miríade de flashes, nem todos conexos, nem todos uma linha de tempo, nem todos factuais, posto que sonhos podem ser fatos reais depois de 40 anos.
Se tivesse registrado seria diferente. Um diário, o livro aberto de uma existência, dos amores aos ódios, dos erros aos acertos, da lucidez às loucuras. Todos os cinquenta tons de uma vida.
Mas quando se opta por uma vida de esconderijos internos, fazer um diário é um perigo. Imagina se alguém o pega? Se o perco na praça enquanto anotava coisas... Se o esqueço num Café... Se alguém vem à minha casa e o pega sem maldade, e o folheia com quem folheia um livro e, um susto, descobre quem sou de verdade?
O que seria de mim, com minhas fraquezas expostas como uma fratura? Supondo, claro, que eu fosse honesto com o meu diário. Que escrevesse nele somente verdades. Que não mentisse para ele. Supondo que eu fosse sincero comigo mesmo, posto que o diário sou eu. Tanta gente mente para si...
Não fiz o diário. Logo, não sei se mentiria para mim mesmo. A verdade pessoal é um mundo cruel. Não somente pelo que fazemos, mas pelo que pensamos. Num diário é preciso ser verdadeiro. Portanto, melhor não ter um.
Quem é forte pode escrever um diário. Quem tem coragem para lutar contra si mesmo. Poucos. Quase ninguém! Só quem tem estômago para olhar para os próprios abismos, para as próprias vísceras sem vomitar a si mesmo, estes podem ter um diário. Um diário decente, quero dizer. Porque indecente consigo mesmo todo mundo é. Daí, um diário assim qualquer idiota tem.
Diário é um espelho que tu crias. Mas tu decides se ele dirá que aquele ali refletido és tu. Espelhos não mentem. Diários mentem. O diário pode ser mais crença, idealização! Espelho é ciência.
De qualquer forma, um diário me diria o quanto mudei e o quanto permaneço o mesmo desde os 13, os 19, os 24. Ele me ajudaria a ter um chão sob meus pés. As palavras ajudariam. Por isso foram inventadas. Mas descobri as palavras muito tarde. E depois que as descobri, não vi logo de cara o quanto elas poderiam fazer por mim. Fui descobrindo aos poucos. E neste descobrir aos poucos, não tive a disciplina, a paciência, a coragem de registrar meus dias.
Apesar de perigoso, tivesse tido um, olhar para trás hoje seria tão interessante quanto especular sobre o futuro. O passado é tão remoto, tão triste, que repisar sobre ele é um pedido para tropeços e quedas. Mas quão interessante seria rever o menino angustiado 50 anos atrás em busca de um amanhã... Imagina reler o que fiz no dia 24 de março de 1971, às vésperas de completar 13 anos?
Certamente não seria pensar que quarenta anos depois estaria escrevendo para um jornal chamado Ibiá sobre não registrar meus dias. Seria o que, então?
Enfim, nunca tive um diário. Mas, se tivesse, ele não seria “querido”!
Crônica publicada pelo Jornal Ibiá em 24 março 2016
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